Sabemos que D. Fernando de Castela conquistou Almeida aos mouros em 1039, que a voltariam a tomar em 1071. Em 1190, D. Sancho I de Portugal conquistou-a de novo, destacando-se pela bravura D. Paio Guterres, neto de D. Egas Moniz, que depois desta conquista ficou apelidado de Almeida.
Existem várias versões para a origem do nome Almeida. Mas toda a gente parece concordar que este nome é de origem árabe. Uns referem que vem do árabe Al Mêda e que significa a mesa, pelo facto da povoação se encontrar situada num vasto planalto, no planalto das mesas. Há também quem afirme que vem do árabe Atmeidam que significa campo ou lugar de corrida de cavalos. E Frei Bernardo de Brito, (1569- 1617) frade cisterciense, natural
de Almeida e cronista-mor do reino, afirmar derivar, Almeida, da configuração do terreno em que a Vila se encontra edificada e cujo nome é Talmeyda.
Existe também uma lenda que diz que a origem de Almeida vem duma mesa cravejada de pedras preciosas que em tempos terá existido junto a Almeida.
O Alcorão ou nome do livro sagrado dos nossos irmãos muçulmanos compreende 114 capítulos. Cada capítulo chamado sura recebe o nome de uma palavra distintiva no início do texto. A primeira sura Al-Fatiha (a abertura); a nº 2 Al-Baqara (A vaca)); a nº 3 Al-Imran (A família de Joaquim); a nº 4 Na-Nisa (as Mulheres) e finalmente aquela que nos interessa a quinta sura: Al-Ma’ida (A Mesa servida). Esta sura compreende 120 versículos. Redigida em
árabe como o conjunto desta obra religiosa, ela foi proclamada, segundo a tradição muçulmana, durante o período designado de Medina.
Origem do nome
Embora o título não faça diretamente parte do texto corânico, a tradição muçulmana deu como nome a esta sura (ou capítulo) A Mesa, mas também é por vezes chamada As obrigações.
Os principais temas desta sura são as missões d’Issa (Jesus de Nazaré) e de (Moisés) Mussa assim como a afirmação segundo a qual as suas mensagens são falsificadas pelos não crentes judeus e pelos cristãos. É nesta sura que é contada a história da mesa servida concedida por Deus (Alá) a Issa (Jesus) para provar a profecia deste.
Elementos históricos
Não existem até hoje fontes ou documentos históricos que nos permitam assegurar-nos da ordem cronológica do Alcorão. No entanto segunda uma lenda muçulmana atribuída a Gafar al-Sadiq (século VIII) e largamente difundida em 1924 pelas autoridades de Al-Azhar (Egipto), esta sura ocupa o 112º lugar. Ela teria sido proclamada durante o período de Medina, ou seja, esquematicamente durante a segunda parte da vida de Maomé, após ter deixado a
Meca. Contestada no século XIX pelas pesquisas universitárias, esta cronologia foi revista por um outro pesquisador chamado Nöldeke, para o qual esta sura é a 114ª. Esta sura é composta por diferentes passagens evocando tanto considerações rituais como polémicas antijudaicas e anticristãs. Um dos pesquisadores que mais estudou esta mesma sura é Michel Cuypers, o qual publicou uma obra de grande fôlego apenas sobre esta sura: a sura Al-meida. A obra de 453 páginas é difícil de resumir nesta breve comunicação.
Mas os versículos que concentram a meditação sobre o sentido desta sura e sobre o seu sentido sãos os versículos seguintes:
«113: Tornaram a dizer: Desejamos desfrutar dela, para que os nossos corações sosseguem e para que saibamos que nos tens dito a verdade, e para que sejamos testemunhas disso.
114: Jesus, filho de Maria, disse: Ó Deus, Senhor nosso, envia-nos do céu uma mesa servida!
Que seja um banquete para o primeiro e último de nós, constituindo-se num sinal Teu; agracia-nos, porque Tu és o melhor dos agraciadores.
115: E disse Deus: Fá-la-ei descer; porém, quem de vós, depois disso, continuar descrendo,
saiba que o castigarei tão severamente como jamais castiguei ninguém da humanidade.»
Portanto o termo Al-meida significa aqui uma mesa servida. A mesa só pode ser uma ma’ida, se ela for guarnecida de alimentos.
A origem da palavra (p. 334) parece ser incerta na tradição do Corão: Um autor Jeffrey contesta as explicações dos lexicógrafos árabes os quais fazem derivar este termo da raíz mâda. Do lado dos orientalistas, uns vão até a uma origem etíope, no sentido de «mesa»; os cristãos etíopes utilizam este termo em particular para designar a mesa da celebração eucarística. Para outros, ela seria de origem persa: em pálavi, myazd designa uma refeição sagrada dos Parsis, na qual são consumidos pão, frutos e vinho. Mas originalmente, em língua avéstica myazda desgina uma oferta que compreende carne e vinho. Aqui a palavra designaria claramente um alimento, mas um alimento sagrado. A vizinhança, no texto, da palavra de origem etíope hawariyyun (apóstolos) torna mais provável a origem igualmente etíope da palavra ma-ida. E a alusão indubitável à eucaristia, nesta passagem do Alcorão, orienta igualmente para a sentido etíope da palavra. A narração do Alcorão narra o pedido de um alimento, mas também o do inacabado da narração. Este inacabado parece ser voluntário.
Parece ser uma parábola convidando o leitor – ouvinte para terminar ele próprio a narração ao tomar posição, ou seja, ao ser crente, ao acreditar. Cuypers sublinha (p. 338) que o primeiro comentário do século VIII, comenta o acontecimento da ma-ida em termos muito próximos da narração evangélica da multiplicação dos pães, que ao que tudo indica ele conhecia (Râzi). Este comentador apenas assinala que este acontecimento se passou num domingo, e é por esse motivo que os cristãos festejam o domingo e celebram em cada ano num tempo determinado esta «descida da ma-ida». A referência pascal é clara, mas Razi não desenvolve o seu comentário nesta direção. Um comentador muçulmano do século XX, Rashid Rida (p. 338) é o primeiro aparentemente a fazer uma ligação em relação à eucaristia e fazendo uma referência ao capítulo 6 de São João.
Devemos aqui referir que o único texto do Novo Testamento (Actos 10, 9-16) que conta uma descida do céu duma mesa guarnecida de alimento na narração da visão de Pedro, em Jope. Mas justamente os alimentos que ali são representados são constituídos de animais impuros o que o repugna. E esta descida não corresponde a nenhum pedido de Pedro, e Jesus não intervém ali. Pedro entra em êxtase. Aqui trata-se de compreender que a Boa Nova deve abrir-se aos pagãos e já não existem alimentos impuros, uma ideia que é estranha ao Alcorão.
A semelhança é, portanto, nas duas narrações apenas a imagem material da descida do céu dum alimento, sem mais nada. Não é, portanto, a esta visão que o Alcorão faz alusão.
A multiplicação dos pães
Nas narrações evangélicas das multiplicações dos pães, o milagre não responde a nenhum pedido dos discípulos e não é dito em lado nenhum que os pães descem do céu. A única referência próxima do Alcorão é que Jesus intervém e que a intervenção conduz a um dom milagroso de alimento (enquanto no Corão isso fica apenas como uma promessa, enquanto nos Evangelhos isso se cumpre de facto efetivamente).
A visão de Pedro e a multiplicação dos pães, que são muitas vezes invocadas para explicar os versículos sobre a Ma-ida, são narrações de acções. Porém nos versículos do Corão, nada se passa ao nível da acção: é uma pura narração de discursos alternados entre os apóstolos, Jesus e Deus. O texto que mais se aproxima do Corão é o discurso do Pão de Vida, no capítulo 6 do Evangelho. Jesus ali dialoga com a multidão dos judeus, e finalmente com
Pedro que fala em nome dos Doze, presentes. Jesus promete um alimento descido do céu, mas isso permanece no estado de promessa. O discurso termina sem que o alimento tenha descido ou comido pelos discípulos, da mesma forma que nos versículos corânicos. Os dois discursos estão igualmente inacabados, abertos para um cumprimento que será realizado pelo ouvinte, leitor crente.
Tanto o Corão como o capítulo VI têm de certa forma o mesmo objetivo: conduzir o crente para passar do alimento material para o espiritual. Mas naturalmente o Corão não podia seguir o capítulo VI até ao fim, visto que Jesus é finalmente identificado como o alimento descido do céu, dado para a vida do mundo (Jo 6, 51). Os comentadores preenchem o silêncio do texto ao compreenderem este alimento como o conhecimento das verdades
espirituais que alimentam o coração do homem.
Podemos ir mais longe. Por três vezes, é o verbo «fazer descer» (em três formas diferentes) que é utilizado a propósito de alimento celeste (112 c; 114b; 115a). Ora, as outras ocorrências das diferentes formas do verbo (nazala) descer, na sura 5, são utilizadas apenas para designar a descida da Palavra da revelação: Torá, Evangelho ou Corão – sobre os profetas.
O verbo, no Corão é praticamente sinónimo de revelar. O que Jesus, como profeta, está antes de mais habilitado de pedir a Deus para que ele o faça descer do Céu, é bem a Palava da revelação, o Evangelho, que segundo o Corão, tem substancialmente o mesmo conteúdo que o próprio Corão. Na sura 4, 1543 não se lê: «As gentes da Escritura não pedem para lhes fazer descer do Céu um Livro?» Se o alimento é bem isso, compreendemos que a falta de fé na sua descida conduz a um castigo mais severo. Trata-se de nada mais, nada menos de acreditar no Enviado de Deus, portador da Palavra que desceu sobre ele da parte de Deus.
Também devemos dizer que as semelhanças ficam por aqui. Aquilo que o capítulo VI desenvolve longamente, o Corão resume e abrevia. O evangelho é uma alta cristologia, como assim o dizem os teólogos. O Corão pelo contrário evacua qualquer traço de transcendência em relação a Jesus. Na perícope da ma-ida, Jesus apenas aparece como um profeta, eventualmente um taumaturgo, mas um ser puramente humano, que pede para ser alimentado também ele pelo alimento celeste, ao mesmo título que os apóstolos. Aliás um pouco mais longe nesta perícope da Al-meida constitui a passagem central duma sequência, cujas passagens extremas proclamam com a maior veemência o caracter não divino de Jesus.
Também seria útil de fazer uma aproximação do discurso de Jesus do texto de Êxodo 16 e do próprio salmo 78 (uma releitura do Êxodo, e cujo versículo 24 é citado textualmente em Jo 6, 31). Este salmo vê no maná «o alimento do povo messiânico», que se tornou para os cristãos uma imagem do festim messiânico, a principal celebração do cristianismo, memorial da Páscoa de Jesus, prefigurada pelas Páscoa judaica. Acontece que no livro do Êxodo,
encontramos várias expressões na conclusão das prescrições relativas à Páscoa judaica, que aparecem também na sura 5, 114c-d: «Que seja um banquete para o primeiro e último de nós, constituindo-se num sinal Teu».
São João e o Corão citam ambos o salmo 78, mas indo buscar dois versículos diferentes. A citação de São João insiste sobre o dom de Deus, a do Corão coloca em relevo a prova da fé. Da mesma forma que as maravilhas de Deus ao longo da história de Israel, evocadas uma a uma no salmo, fazendo apelo à fé e à fidelidade do povo de Israel, assim a descida da ma’ida deve operar um discernimento entre os «crentes» e os «descrentes».
Em conclusão:
A sura 5 Al-Maida, que começa por se dirigir «àqueles que acreditam», os muçulmanos que celebram vitoriosamente a sua peregrinação, passa rapidamente para as gentes da Escritura. Estas ocupam um lugar principal na sura, o que pode surpreender no quadro da peregrinação de adeus: segundo a história dos acontecimentos apresentada pela tradição muçulmana, nem os judeus nem os cristãos deveriam estar presentes (na Meca). A
peregrinação consagrava em si a vitória da comunidade muçulmana sobre os pagãos da Meca, não sobre as gentes da Escritura. A rigor, podia-se compreender num texto recapitulativo, os ataques por vezes virulentos contra os judeus, como uma lembrança dos desacordos que teriam surgido, a partir do ano 624, entre judeus e muçulmanos em Medina, desacordos que a comunidade muçulmana apresenta com frequência como manifestações unilaterais e injustificadas da parte dos judeus. Mas não pode deixar de se fazer a interrogação sobre a razão de ser do lugar muito importante concedido, na sura, sobre a polémica com os cristãos, cuja presença, parece, era mais do que discreta, segundo a tradição muçulmana, tanto na cidade de Medina, como na cidade da Meca. Ora, a sura dá-nos o sentimento dum enfrentamento com uma comunidade cristã importante e organizada, concorrente com os
muçulmanos. Por outro lado, o insistente apelo para que os cristãos se convertam, que se estende até duas das três sequências da segunda secção, desenvolve uma panóplia impressionante de argumentos que devem ter levado tempo para se elaborarem ao longo das controversas. Tudo isso não se enquadra verdadeiramente com a peregrinação do adeus, ou até com a carreira profética de Maomé, tais como a narração muçulmana da Sura os
apresenta. O lugar concedido na sura 5 ( a Al-meida) aos cristãos, e não apenas aos judeus, convidar-nos-ia a imaginar uma época mais tardia, quando o Islão foi implantado em plena terra cristã. Esta perspetiva, sabemos, quadra-se mal com a tradição muçulmana segundo a qual a redação do texto do Corão (mas não a sua compilação) foi concluída ao mesmo tempo que a sua revelação ao Profeta Maomé. A menos que se inverta o problema, e possamos admitir que o texto do Corão suponha sem dúvida uma presença cristã importante na cidade de Meca, ou até em Medina, o que contradiria igualmente a tradição histórica muçulmana. A questão, pois, permanece aberta.
Agrada-me que esta questão permaneça em aberto, como a questão da origem do nome Almeida, que aqui nos reúne neste dia.
A situação de fronteira que esta terra sempre teve é também por isso importante e significativa.
Já Massena, em 1811 aqui procurava e na região de Castela os mantimentos para as suas tropas esfaimadas. A mesa que deveria descer do Céu apenas foi para esses soldados das armadas de Napoleão, não uma visão, mas uma terrível miragem, que conduziu esses soldados a praticar graves desmandos e atrocidades sem conta, como esta região nunca tinha visto assim ao longo da sua história. Possa agora Almeida permanecer um porto seguro e uma mesa fraternal, como esta que a Câmara Municipal de Almeida e a Associação que em boa hora tem desenvolvido nestes encontros de Almeida por Almeida: uma mesa fraternal bemposta e bem nutrida, de diálogos e de encontros.
Fr. José Luis de Almeida Monteiro, o.p./ Paris
1. Michel Cuypers, Le Festin- Une lecture de la sourate al-Mâ’ida, Lethielleux, 2007, Paris, 453p.